sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

COAXOS NA ESCURIDÃO...


Em minha ingênua mas doce infância havia uns diabos que à noite cravavam estacas no brejo ao largo do velho paiol fincado à borda do quintal, toda noite, a noite toda, intermitentemente, infância afora; até que um dia, então consolado, descobri que aquelas pancadas, como que de machado à testa de uma braúna, eram simples coaxos disparados na escuridão. Até hoje eles me batem no coração.

O medo que era meu também foi seu; o medo que tem fonte que razão é o mesmo que constroi solidão. Foi assim que eu disse um dia, em breve poesia, o que fora meu medo à beira da mata fechada, ao lado do brejo úmido pontilhado de tábuas verdes que ao sol a pino jogavam painas no ar que eu respirava, mas que não era meu, por estranho que parecia.

Aquele medo que um dia optei por revelar em preto-e-branco para colar no álbum da minha imensa esperança não foi um medo qualquer. Foi um medo incomum que brotava da natureza, seu brejo, capoeira e mata úmida em que (eu sabia porque me disseram!) se amoitavam montes de bichos entre estranhos e engraçados. E todos viviam à mercê de caipora, que os liderava picadas mata afora até alcançarem o travesseiro dos meninos, que não sabiam o que era luz, mesmo que olhassem detidamente para a lua cheia.

E era exatamente nos dias de lua, que de cheia emagrecia, que a mim me apresentaram muitos moleques estranhos, filhos da dúvida e do segredo, que namoravam e pariam na mata, a começar pelo saci, negrinho reluzente que um dia se perdeu no pastoreio e cujo andar me segredava ao pé da imaginação que estava a caminho um som pererê, querendo roubar a minha perna. Eu nunca soube se era a direita ou se a esquerda. E temia pelas duas, imaginando que, ao final de contas, poderia haver dois sacis excepcionais a quem jamais alguém teria oferecido prótese, mesmo que fosse de gomos de bambu.

E quando batia metade de outubro na folhinha gente, em que o sol por inteiro engrossava nuvns negras nos costados da montanha em cujo grotão a gente morava, eu temia mais; mais por não saber qual outro medo ocuparia então o quarto escuro da minha noite crescente a ser saudada por faíscas tracejantes que riscavam o céu barulhento açoitado pela ventania.

Encolhido em minha cama de palha de milho manchada de mijo amarelo, eu esperava que à sensação de que a mata cairia depois da arrevoada das telhas se seguiria o clamor de minha mãe, que reunia os filhos e todo o seu medo à beira da cama, como a galinha ajunta os seus à vista de um gavião, para ler a beleza da esperança e rezar as petições por inteiro. E daquela casa nunca voou telha, forte que o vento tivesse sido.

E assim percebi que as tempestades só sacolejavam a mata para separar joio e trigo; e que cumpriam a missão de fazer com que o solo estremecido pelos estrondos soturnos sorvesse grande medida de toda a água fria que começava a cair e caía, espessa ou delicada, para saciar a sede de tanta natureza e alimentar o brejo em que todos os sapos, no segredo dos seus coaxos, só malhavam as pontas das estacas para provocar minha inocente solidão de menino.

O pânico de mamãe encolhida sob joelhos era tanto que quase marejava dos seus olhos esbugalhados enquanto a Deus ia para implorar socorro. Mas nada daquilo me induziu a temer as coisas que sempre ocorreriam acima de mim, abaixo do sol ou da lua, entre as nuvens que revoltas faiscavam o horizonte enquanto disparavam trovões. Meu pai avisava que aquilo era a voz de Deus irado dando pito na gente.

Os coaxos disparados na escuridão silenciaram porque não há mais brejos à minha volta. Foram aniquilados pela engenharia agronômica; e, arredias, suas maciças touceiras de tábua, origem de tênue paina alva e macia, deram vaga à macega, aos espinhos e aos cardos. A bruxa, o caipora, o curupira e o moleque-saci fugiram do machado e desapareceram da mata misteriosa à frente do fogo. Ninguém os viu para me contar como eram em pele e osso, à exceção de saci de uma perna só que um dia vi no pasto à beira do curral fazendo careta pra minha avó.



fonte Newsletter Jayme Copstein/ Orlando Eller

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