terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

MUDAR DE VIDA - Luiz Gonzaga




Raios crescendo em fonte em tarde repleta de nuvens. Romualdo percebe sua mão fria diante da incumbência. Desatarraxar míseros parafusos. Resultados da ânsia de fecho da alma humana encalacrada. Ele faz frete e o dinheiro que recebe não faz frente às suas necessidades, mas isso não tem importância, para quem parece se acostumar com a rotina e perder o sentido do resto.

No epicentro da sua rotina, o desmonte de um móvel. O dia, um sábado chuvoso. Sábados não são recomendados pelos condomínios para mudanças, mas quem dá bola para isso se é o único dia realmente livre para as pessoas ciganas, as que mudam a cada ano em busca de valores imobiliários mais atraentes.

A não ser que os domingos fossem autorizados para estes tipos de trabalho, mas aí teria aquela coisa católica, que para os judeus seria sábado e assim por diante. Este argumento, porém, seria refutado por policiais, médicos, motoristas de ônibus, bombeiros, jornalistas e outros representantes de profissões consideradas essenciais.

Diante da mobília a ser manuseada, a chave de fenda suspensa entre o dedo indicador e o médio e os demais dedos libertos, tamborilando na superfície da madeira. Era um simples armário que carregava o fardo das roupas cansadas de envolvê-lo em dias de queixos batidos.

Num suave aperto, a chave encontra sua fenda como encaixe de um quebra-cabeça com peças ausentes. Escorrega como graxa e repica no solo ecoante como baqueta em tambor. Não esmorece nunca Romualdo, acostumado tanto a mudanças quanto a empunhar dedos na limpeza de cristais da mansão de um empresário famoso, este que está mudando de casa hoje.

Carinho no cabo em acrílico repossuindo a peça desfalecida. Agora a mão rígida lembra a de um espadachim à procura da brecha que verte sangue e lágrimas. Fenda funda e propícia ao primeiro desparafusar, sentido anti-horário: equilíbrio entre força e destreza; atenção e domínio do corpo sobre as inabilidades. Parafuso que gira. Tempo que corre para trás. Memória a fundar hipóteses sobre a engenharia das coisas. Passa largo Romualdo, sem saber o que pensar. Não há o que pensar no desparafusar.

Chave Philips, chave de boca, alicate, mala de ferramentas a viajar de móvel em móvel. No décimo parafuso, reflete, enxuga o suor polpudo e, novamente, baixa a cabeça, atos repetidos e desconexos. A mecânica superando a origem da criação. Faltam almas a ignorar a rotina. Parafuso deixa a rosca desolada, tragédia do aparte. Com as duas peças na mão direita, a que não é sinistra, somatiza a frieza da matéria e o calor dos seres, na oposição da criação. Processos estranhos esses da desconstrução.

Romualdo faz frete. Faz troça da vida em troca. O ser burlando a essência, deslocando no ar como gaivota. Fração de minutos e o caminhão está cheio, pneus oprimidos. Dores nas costas do carrega-descarrega. Romualdo olha para o parceiro Fernando à direita da boléia. Pretende um dia mudar de vida.
fonte: Newsletter Jayme Copstein

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