domingo, 21 de março de 2010

A CASA FOI DEMOLIDA - Déa Januzzi

Primeiro, derrubaram-lhe o telhado, depois as janelas e em seguida arrancaram suas vísceras. No fim da tarde de segunda-feira, dia 15, não havia mais nem sinal da casa que abrigou o Bar Brasil, na esquina das ruas Aimorés com Maranhão. A ordem era demolir o passado para dar lugar a mais um prédio de muitos andares, garagens e carros. Nada de história, de conversa de bar, de amigos e de “canjas” dos músicos mineiros que praticamente moravam no bar. Fiéis seguidores de Tadeu Ferreira Rodrigues, toda uma geração de jornalistas, escritores e músicos encontrou abrigo no Bar Brasil. Foram sonhos compartilhados, projetos de vida traçados e até músicas nasceram no suave tamborilar dos dedos nas mesas.

A casa foi vendida. Foi parar no chão como se fosse uma casca de ovo, sem sensações, experiências e conteúdos. Com todos os porres homéricos, com toda a embriaguez, com todas as realizações. Que os bêbados, os solitários e os sem-destino perdoem a quem se atreveu a estilhaçar tantas vidas, a pisotear os sonhos. O Bar Brasil faz parte de nossa história, está em nós como nossas inquietações, como nossos fantasmas. Ele nos permitiu exorcizar nossos demônios internos e externos, como a ditadura que já rondava o Bar Brasil, quando ainda estava instalado na Vitória Marçola, no Bairro Anchieta. Era ali que Fernando Brant montava seu front. Morador de um prédio em frente ao bar do Tadeu, que ocupava uma loja e uma garagem, Fernando recebia os amigos, compunha e ganhava o mundo.

O bar do Tadeu era uma espécie de front, retrato de uma geração, que tinha o privilégio de ver Milton Nascimento, o Bituca, cantar. Como ocorreu certa vez quando o show do Mackenzie foi cancelado e o cantor brindou todo mundo com sua voz dentro e fora do bar.

Os antigos frequentadores sabem que foi no bar do Tadeu que ocorreram as reuniões e conversas do primeiro espetáculo da nova companhia de dança que iria despontar para o mundo: o Corpo idealizou o espetáculo Maria, Maria no bar do Tadeu, que inclusive foi assistente de cenografia.

“Sou do mundo, sou Minas Gerais.” A letra da música parece descrever bem o clima instaurado no fim dos anos 1970, início de 1980. Tadeu revolucionou, foi bandeira para intelectuais que se reuniam em seus bares. Tímido, silencioso, educado, como convém a um dono de bar, Tadeu se assustou quando anunciaram o fim do Bar Brasil, na Aimorés com Maranhão. Desta vez, não iam calar a sua voz. Em questão de horas reuniu os amigos e remanescentes para uma despedida na rua, em frente ao bar, no domingo, dia 14.

Todos estavam lá para se despedir, para ouvir o depoimento emocionado de Tadeu, que transferiu o Bar Brasil para a esquina da Rua Aimorés com Maranhão em 1989 e onde permaneceu até 2003. Todos estavam lá para enterrar as lembranças debaixo dos escombros. Ela e o filho também, para a última despedida, a derradeira. Quem passar pela esquina hoje só vai sentir o sussurrar do vento e da chuva sobre as ruínas de uma casa que teve seu tombamento anunciado há 16 anos, mas que mais uma vez tombou literalmente sob os olhos e o consentimento das autoridades. A casa não existe mais.

Ninguém melhor do que o mineiro, poeta maior, Carlos Drummond de Andrade, para terminar esse texto: “A casa foi vendida /com todas as lembranças/todos os móveis/todos os pesadelos/todos os pecados cometidos ou em via de cometer/a casa foi vendida com seu bater de portas/com seu vento encanado/com sua vista do mundo/seus imponderáveis/por vinte, vinte contos.”

Convocado várias vezes para denunciar a destruição do patrimônio da capital mineira, em 14 de agosto de 1976, ele fez o poema Triste horizonte, contra a decisão arbitrária da mineradora da época de proibir que os moradores da cidade visitassem a Serra do Curral. Ele também deixou registrado, nesse poema, seu espanto quando os jardins da Igreja São José se transformaram em estacionamento e a Igreja Nossa Senhora das Dores, no Bairro Floresta, cedeu espaço para o comércio. “Por que não vais a Belo Horizonte? A saudade cicia e continua, branda: Volta lá. Tudo é belo e cantante na coleção de perfumes das avenidas que levam ao amor, nos espelhos de luz e penumbra onde se projetam os puros jogos de viver. Anda! Volta lá, volta já. E eu respondo, carrancudo: Não. Não voltarei para ver o que não merece ser visto, o que merece ser esquecido, se revogado não pode ser....”. No fim do poema, ele diz: “Sossega, minha saudade. Não me cicies outra vez o impróprio convite. Não quero mais, não quero ver-te meu Triste Horizonte e destroçado amor”.


Fonte  -  Jornal Estado de Minas  -  21/03/2010

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